sábado, 21 de junho de 2008

Ah, o Centro.

Ah, o Centro.
Como moradora do Menino Deus, nunca tive a oportunidade de andar pelas ruas de meu bairro e esbarrar em pessoas diferentes a cada esquina. São índios, loiros, morenos, ruivos, calvos, grisalhos, negros, albinos, crianças, idosos, gente sem idade definida, pedintes, compro-ouro-corto-cabelos, mágicos, prostitutas, malabaristas. É isso que aprecio no Centro: os encontros. Andar nas ruas, esbarrando, esquivando, contorcendo para fugir dos apressados, olhando, sempre, a todos. Ver seus olhos cansados, a fumaça saindo da boca, os braços estendidos entregando panfletos, os corpos enrolados em jornais no chão, as crianças tocando violas acompanhadas por gaiteiros já passados da validade.

Ah, o Centro.
Nos dias de hoje, em que todos fugimos do contato humano apelando para o mundo cibernético, o Centro permanece como último remanescente da humanidade. É lá que todos trocam toques e carinhos apressados e sem compromisso. Onde algumas pessoas voltam a sentir-se amadas, pedem desculpas pela diminuta relação que tiveram e seguem em frente, um pouco mais felizes. Um pouco mais aquecidas. São pequenos esbarros, pequenos pegares de mãos, pequenos chutes nos tendões de Aquiles, mas que fazem toda a diferença para os carentes da cidade.

Ah, o Centro.
Andradas, Sete de Setembro, Duque de Caxias, Borges de Medeiros. Lombas e planos. Tenho uma estranha atração pelas ruas do Centro. Os calçamentos, as árvores, as mesas de damas, os colares e brincos expostos, os passantes e os estáticos. Enquanto atravesso o Centro, meus olhos vão captando as belezas escondidas e as sutilezas imperceptíveis aos apressados.

Ah, o Centro.
Outra peculiar alegria minha são os dias de chuva. Literalmente, chove de baixo para cima, de cima para baixo, de todos os lados para lado algum. É aí que entram os guarda-chuvas. Coloridos, pretos, transparentes, gigantes, médios e pequenos, frágeis e firmes, todos amontoados formando um descompassado tapete que cobre as ruas. O Centro vira carnaval e a cidade desfila pelas avenidas.

Ah, o Centro.

* Artigo publicado no Jornal do Centro

A estrela solitária - Leo e o Fogão

O time do Botafogo entrou em campo.

Leo tem os cabelos curtos. Para o lado. Uma cicatriz no lado direito do rosto, fruto de pontos mal feitos por uma enfermeira iniciante após uma cirurgia. Não usa tênis ou chinelos, apenas sapatos. Sapatos pretos, sociais. Pretos gastos, puídos, quase nunca novos. Às vezes troca por sapatos de camurça, verde musgo. Mas gosta mesmo é dos pretos. Usa blusões de lã e é pouco extravagante: opta sempre pelo marrom ou bege ou verde ou creme ou por sua companheira camisa do Botafogo. Não sente muito frio. Costuma usar somente os blusões e uma camiseta por baixo. Diz que seu casaco está com a ex-namorada. O carioca já se acostumou com o clima do sul. Veio do Rio de Janeiro, capital. Sempre morou em capital. Até na hora de trocar de casa, as opções ficaram entre Curitiba e Porto Alegre. Optou pela capital gaúcha. Diz que Curitiba é muito certinha. “Lá todos os relógios marcam a mesma hora.” Realmente. Como morar em uma cidade dessas?

Renan, Renato Silva, Leandro Guerreiro – “Esse aí se criou no Inter” - e Bruno Costa; Alessandro, Túlio, Diguinho, Lucio Flávio e Zé Carlos; Jorge Henrique e Fábio – “Esse Fábio é bom”.

Algumas pessoas acham estranho ver um cara na faculdade sempre encostado na mesma janela do saguão, sozinho, e com sua camiseta do Botafogo. Quando era pequeno, no Rio, foi expulso do colégio por pensarem que era um projeto de serial killer. Ele realmente tem esse perfil. É quieto, fala pouco, poderia ter matado sua própria mãe no dia das mães. Mas não. Preferiu matar o tempo e se mudar para Porto Alegre. Tentado pelas belas gaúchas e cansado da feiúra das cariocas, Leo, na época chamado de Ronnie – fruto de uma grotesca comparação com Ronnie Von – fingiu uma terrível depressão e veio continuar os estudos de história. De saco cheio de formar grupos com freiras, deficientes físicos e retardados, decidiu trocar de curso. “Não estava em sintonia com o grupo, em todos os sentidos. Até locomotores. Deus ta olhando tudo... Vai me dar um filho com Down. Mas eu não me importo”. Passou na segunda tentativa para o curso de jornalismo. E lá onde se encontra até hoje. Não faz o menor tipo de jornalista medíocre. Não gosta de seguir a maldita pirâmide invertida ou inventar um tosco lead. É um cara criativo e de escrita explosiva. Gosta mesmo é da liberdade. Poder escrever do jeito que quiser, sem ter um editor chato lhe cortando as asas. É até por isso que não consegue se imaginar atuando no jornalismo. A empresa deverá ser muito estranha para deixá-lo publicar as coisas do seu próprio jeito. É uma personalidade em falta no jornalismo.

Gol!Ah.. Putaquepariu... É muito azarado esse Botafogo”!

Em sua casa, é observado por dois Roberto Carlos em diferentes fases. Bonecos espalhados pelas estantes fazem o papel de mãe. Sua geladeira, sempre vazia, mostra que o rapaz mora sozinho. A mãe vive em Porto Alegre, mas ele não agüentaria dividir o apartamento com ela. Morando sozinho, teve que aprender a comer qualquer coisa. Se tem alguma coisa na geladeira, ele come. Não importa o que seja. “Só não como aquilo que eu realmente não gosto, como dobradinha e pirão”. As roupas espalhadas pelas cadeiras também mostram que o rapaz que só comia pratos de criança – bife, batatas fritas, arroz e feijão - ainda não se acostumou à vida de gente grande.

Esse Gaciba tem uma cara de nazista...

Leo é um homem intenso. Se apaixona e desapaixona com uma facilidade enorme. Um dia é uma bonitinha do segundo semestre que é um charme. No outro, é uma loirinha com uma voz bonita. Depois, é Ângela Carne Osso, dos filmes de Sganzerla. Aí vem aquela ruiva, de cabelo curtinho, que ele viu dançando em uma festa. Adora os óculos e o jeito de caminhar da baixinha do sétimo semestre. “Descobre pra mim se ela é burra”. “As portas são as melhores”. Mas, logo, logo, já se desapaixona por todas. E não é apaixonado por mais ninguém.

Já deram duas bolas na trave.

Ele tem como sobrenome um dos mais tradicionais bairros de Porto Alegre, embora frise que é com ême e tudo junto. Mora na Cidade Baixa, quase no Centro. Não é muito fã de passeios ao ar livre. Prefere ficar em casa vendo filmes ou ir ao cinema. Por falar em cinema, é o mais novo curador das mostras de Porto Alegre. Louco por cinema brasileiro, Leo organizou uma mostra de cinema marginal, com filmes da década de 70, muitos nunca exibidos. Tem ido a todas as sessões, mesmo àquelas que já assistiu. Milhares de vezes. O que mais gostou foi Hitler III Mundo. Leo tem um encanto por filmes estranhos. A sua casa é repleta de livros de cinema, com Trouffaut e Godard o olhando de cima a baixo, na prateleira.

Falta! Cartão! Dá vermelho logo!

Leo é músico. Toca guitarra. Obviamente, na guitarra dele tem o brasão do Botafogo. Em um show, enquanto tocavam a trilha de um filme, uma corda da querida Giannini se rompeu. No meio da música. A última do show. Leo não pensou duas vezes. Quebrou a guitarra em mil pedaços, no chão do palco. E, como um bom rock star, jogou para o público. Em um acesso alucinante promovido pela música, Leo foi contra toda sua vida de não-violência e destruiu a pobre Giannini no duro chão da fama. Ficou com o corpo da guitarra. Expõe na parede de casa. O braço da guitarra, para sua surpresa, foi pego por uma amiga – eu – que guarda até hoje a lembrança do inesquecível show. “Achei que um imbecil ia pegar”.

Beleza! Vai pro contra-ataque!

Bomfim tem amigos peculiares. Plato é um deles. Plato Divorak. É nome artístico, claro. Mas virou nome próprio. É o vocalista da banda de Leo. É com ele que Leo passa os mais inacreditáveis momentos. O interessante é o senso de humor que Leo tem quando com ele. Plato é ingênuo e Leo aproveita a situação mentindo absolutamente tudo. Mas eles se amam. Plato também é sacana. Coloca Leo nas maiores enrascadas, como acompanhá-lo em um puteiro barato. Leo também se deu muito bem com os chineses. Todos que já passaram pela Famecos. Ano passado, fez amizade com Paulo. Paulo ensinava palavrões em chinês para Leo. Tsau Ni Má. Leo ensinava em português. E todos se sacaneavam mutuamente. Atualmente, há novos chineses na Famecos. Eles já deram um apelido chinês a Leo: Sai Chau. O problema é que na China cada palavra é diferente dependendo da entonação. Leo nunca vai saber o que significa. E o chineses riem toda vez que o chamam. Mas não importa. Ele adora os chineses. E o Tibet que se dane.

Golaço! Putaquepariu...

Leo é meio duro nos movimentos. Não costuma encostar nas pessoas quando as cumprimenta. Os abraços são de longe. Está sempre mexendo no cabelo. Arrumando um cabelo eternamente bagunçado, até porque é a ex-namorada que corta o cabelo dele. Não olha muito nos olhos das pessoas. Não tirou o olhar da televisão, nem no intervalo do jogo. Também não muda o tom da voz. Costuma falar sempre na mesma calma, não importa o tema. Nunca se exalta. Sempre tira sarro das coisas, principalmente daqueles que conhece. Ele e seu amigo Rafa são exímios tiradores de sarro sem que os outros consigam percebem que estão sendo sacaneados.

Já vi que vai ser difícil sair gol.

Aos 28 minutos do segundo tempo, começou a sacudir e batucar os pés. Estava inquieto. O Botafogo jogava muito mal e tomava um sufoco do Atlético Mineiro. O que é realmente preocupante. Mas Leo não se importa muito. Não se enerva. Torce quieto, dizendo as vezes poucas palavras de irritação. Somente quando o Fogão perdeu um gol feito que Leo disse baixo um putaquepariu e bateu nas pernas, com raiva. E só. Estranho, vindo de um botafoguense que foi até o Maracanã no fim de semana somente para ver a final do carioca. E que queria estar no Rio na quinta-feira, depois da eliminação do Flamengo, só para tirar com a cara dos flamenguistas. Leo é um pouco controverso. É o cara quieto, na dele, mas que, quando tem a oportunidade, rasga todas as formalidades e não dispensa uma boa piada. É uma figura peculiar. Ouve músicas estranhas, vê filmes estranhos, torce por um time estranho. Mas, no fundo, no fundo, é um guri bom. Bem bom.

Fim da partida no Mineirão. 0 a 0. O jogo de volta, no Maracanã, é decisivo. Quem ganhar está classificado para a próxima fase da Copa do Brasil. Os jogadores trocam de camisa, trocam apertos de mão. É o Fogão e o Galo tentando a classificação. Vem pro Rio, Leonardo!

sábado, 7 de junho de 2008

A espuma


Oto tinha fendas branquiais. Fendas branquiais, nos mamíferos, seriam as brânquias dos peixes que, no processo embrionário humano, se fecham e se transformam nas trompas de Eustáquio. Mas isso não vem ao caso. Oto tinha fendas branquiais. Quando embrião, seu aparelho respiratório primitivo não se degenerou e criou as fendas que atualmente possui atrás das orelhas. Ninguém nunca soube de suas fendas. Sempre as escondeu com os cabelos longos. Mas sempre soube que não pertencia a este mundo. No colégio, queria saber mais sobre os animais aquáticos. Sobre peixes, arraias, tubarões, tintureiras. Achava fantástico o poder de respirarem de baixo d’água. Não sabia ao certo quais as limitações de suas fendas. Não sabia se, por acaso, caísse n’água, poderia respirar. Oto não sabia nadar. Sempre teve medo de entrar em piscinas ou no mar, com medo de que algo de estranho pudesse acontecer. Trabalhava em um escritório de advocacia, no centro da cidade, longe de tudo aquilo que acreditava pertencer. Oto nunca viu o mar. Não sabia a cor, o cheiro, o toque salgado. Também nunca teve vontade de conhecer. Sempre teve medo do tamanho do oceano.
Um dia, sentado em sua mesa, levantou abruptamente, pegou seu casaco e saiu pela porta de vidro. Entrou no elevador, desceu os quatorze andares que o separavam do térreo e cruzou o estacionamento. Destrancou seu Escorte Azul 92, entrou e parou. Colocou as mãos no volante e abaixou a cabeça. Puxou o espelho retrovisor e se olhou. Olhou os olhos cansados, os lábios secos, a garganta ardida. Precisava beber. Apertou o botão da porta da garagem e saiu vagarosamente. Rodou até o bar mais próximo, na esquina. Não poderia ir andando, suas pernas não o agüentariam. Levantou-se do banco de couro puído e foi até o Boteco Bill. Pediu uma purinha, branquinha, em copo baixo, sabor tangerina. Engoliu de uma botada só. Pediu outra. Agora sabor pitanga. Outra, de menta. “Agora me vê da pura mesmo”. Continuava com sede. Pagou a conta e foi até o bilhar do outro lado da rua. Seu amigo Túlio jogava uma partidinha. Pediram uma cerveja, sem espuma. Pediram quatro. Oto sentia sede. Muita sede. Pendurou a conta, depois de muito enrolar Quintanilhas, o dono do bar, e saiu. Entrou em Deise e saiu. (Chamava o Escorte de Deise, ninguém sabia o porquê.) Decidiu que iria até o limite do centro. Até a rua Nogueira de Cardoso. Não mais, porque precisava voltar para o escritório, para sua mesa, para as piadas de Rubens Palermo, para os lápis sem ponta, as canetas sem tampa, as tesouras sem fio. As fendas doíam. Já haviam doído outras vezes, mas era só molhá-las um pouco que a dor passava. As fendas sangravam. Oto não sabia se estavam rasgando ainda mais suas carnes ou se fechavam por obra divina. Será que Deus estava olhando por ele, como muitas vezes havia pedido ajoelhado nos pés da cama? Não. Deus era muito ocupado para olhar a essa hora do dia para Oto de Resende Murtosa, um reles assistente em um escritório de advocacia no centro da cidade. Deus olhava para aqueles bem afortunados. Somente os ricos eram acompanhados por Ele. Somente eles tinham sorte. Oto não. Oto era apenas mais um, mais uma formiga caminhando nas esquinas do centro, esperando ser esmagada pelo pé divino. As fendas doíam. Oto resolveu passar os limites do centro. Rodou meia hora até o fim da cidade. De lá, dirigiu até o litoral, a 80km de onde estava. Não pensava no escritório, nem nos peitos saltitantes de Marielza, nem nas portas do banheiro rangindo, nem nas pilhas de processos voando com as janelas abertas. Apenas pensava nas fendas. Achou que elas queriam ver o mar. Então saciaria a sede das guelras com a visão do oceano. Na praia, tirou os sapatos e arrastou os pés descalços nos grossos grãos de areia escura. Entrou até os calcanhares na água fria e salgada. Abaixou-se, pegou um pouco de água nas mãos em forma de concha e empapou o colarinho, embebendo as brânquias com azul. Levantou-se e mergulhou. Perdeu-se na espuma das ondas. E desapareceu.
“Oto, pára de babar no processo e aponta o lápis pra mim”. As fendas doíam. Já haviam doído outras vezes, mas era só molhá-las...