sexta-feira, 30 de maio de 2008

Skillas e o apito inicial

Skill Futebol Feminino. Não vem do inglês skill, que significa habilidade. Até poderia vir, mas não vem. É referente à empresa do pai de uma das jogadoras. Na falta de um nome durante a reunião da comissão técnica, ficou Skill mesmo. Ninguém se opôs, uma vez que ninguém foi. O time se formou no dia em que fecharam as inscrições para o I Campeonato Metropolitano de Futebol Feminino. Foi aí que tudo começou. Primeiro, as meninas tinham que se conhecer. Uma chamou amigas, outra chamou colegas e conhecidas. Conseguiram uma goleira a duras penas. Mas conseguiram. Tinham uma semana para treinar o máximo que podiam para a estréia no campeonato. Estréia contra o time da ex-jogadora Duda, fiel incentivadora das mulheres no futebol. Ela não joga mais há anos, mas formou dois times a fim de conseguir as duas vagas que abrirão para o Estadual, fruto das duas melhores colocações no metropolitano. Duda apostou todas as suas fichas. Meninas que treinam juntas há séculos, que jogam desde pequenas, que ainda são pequenas, que têm pulmões, que jogam em clubes da cidade. Além dos dois Dudas, outros times desconhecidos alimentavam a imaginação das skillas. Como seria o representante francês Rey Sol? O oriundo da segunda divisão Corinthians? O Atlético da Bom Jesus (da Bom Jesus!)? O boêmio Vinícius de Morais? O emissário do zoológico Sapucaiense? O pantera negra Black Show? O soviético CEVI/KRAI? Muitas das participantes do Skill nunca haviam jogado futebol onze, de campo. Muitas ainda não tinham músculos suficientes para fazer com que a bola atravessasse o círculo central. Muitas não tinham o menor referencial das dimensões do gramado. Mas mesmo assim elas apostaram na zebra e treinaram. Encontraram-se no parque Marinha, antro de bêbados e mendigos, durante a noite de uma segunda-feira. Entraram pela primeira vez em um campo de várzea, muito parecido com o que iriam jogar. No entanto, o gramado não existia. “Alguém lembrou de trazer a grama?”, disse uma delas. O único local disponível, de graça, no centro da cidade, possuía um dos piores campos possíveis. Perfeito para uma lesão de joelho. Mas elas seguiram. Apresentaram-se uma a uma. Clarissa, Larissa, Gabrielas, Grasiele, Ariana, Pâmela, Lisie, Fernanda, Giedre, Thais, Rochelle, Évelyn, Carol, Christiane, Julia, Sabrina, Adriana, Marina, Camila, Lauren. Estudantes de educação física, arquitetura, jornalismo, engenharia de minas, publicidade, direito, até uma brigadiana, todas unidas pelo amor à competição e ao futebol. Zagueiras, volantes, meias, laterais, atacantes e até uma goleira. A zebra do campeonato havia se juntado. Uma semana antes do primeiro jogo. Treinaram quatro vezes durante os sete dias que antecediam à estréia. Compraram uniformes esmeraldino-negros, com meiões pretos e chuteiras de travas por 50 reais no Centro. Conseguiram três técnicos. Wilson, Mirim e o outro que ninguém sabe o nome – ele só apareceria no dia do jogo. Wilson é formado em educação física e inicialmente parecia um chato de galocha, daqueles malas que querem mostrar serviço. Porém, durante os treinos, virou o xodó das mães que acompanhavam o time. “Ele é um amor! É muito carinhoso com as gurias”, dizia a genitora cacheada grudada no alambrado do campo suplementar da ESEF – Escola Superior de Educação Física da UFRGS -. Mirim é Guilherme. De 1,60m. Ainda estudante de educação física na PUC. O preparador-físico-sem-nome ficou esquecido pelas meninas, que clamavam pela presença dos dois técnicos de antagônicas estaturas e seus chinesinhos laranjas demarcadores de posições. Nos primeiros treinos, o quorum foi invejável. Em torno de 15 meninas apareceram. Algumas não jogavam há muito tempo, fruto de lesões ou falta de tempo. Algumas não respiravam mais. A reclamação era a ausência das outras seis jogadoras, que haviam esquecido do treino ou simplesmente estavam doentes ou em aula. Mas elas tinham certeza de que no sábado pré-jogo todas compareceriam. Afinal, todas querem jogar. E era nesse dia que os técnicos paradoxais decidiriam o time titular. As meninas treinaram na areia, sem luz, em campos reduzidos, com menos atletas, com bolas murchas, com bolas pesadas, no frio, no calor. Treinaram em todas as condições adversas possíveis. Além do fato de nunca terem jogado juntas, elas ainda enfrentavam o problema da falta de estrutura. Os técnicos tentavam incentivar, falavam que as individualidades eram ótimas, que só faltava ritmo de jogo, cadência, entrosamento, coisas que só ao jogar são arrumadas. No sábado pré-jogo, surpreendentemente, nem todas as meninas apareceram. O treino deu-se a baixo de frio e chuva, em um campo de futebol society. As posições foram definidas. Christianes no gol. Gabrielas na zaga. Clarissas e Laurens nas laterais. Larissas e Giedres de volantes. Évelyns e Sabrinas como meias. Pâmelas e Lisies no ataque. Domingo se aproximava. Era o dia da prova final, do teste. A zagueira direita estava temerosa. Pouco confiante. Não sabia ao certo se conseguiria atuar em um campo tão grande. Ela, além de nunca ter jogado futebol onze, tinha asma. Não tinha medo das adversárias. Tinha medo era de si mesma. A meia esquerda não acreditava em seu futebol. Wilson, o alto, teve que chamá-la e dizer: estou te colocando porque eu tenho confiança em ti. És a melhor da posição, quem vai poder criar no time. Ela não acreditou muito, mas fingiu que sim. A atacante/centroavante tinha receio do joelho. Há oito meses havia rompido os ligamentos. A primeira volante ficara encarregada de proteger a inexperiente defesa, uma vez que era pouco provável que as laterais, após um pique até o ataque, voltassem para ajudar. O time tentava se manter confiante, mas era difícil frente à estréia contra um time entrosado e, principalmente, jovem. A média das jogadoras ficava entre os 15 e 16 anos. A média do Skill era de 21 anos. Mesmo com a pequena lacuna de idade, era notável a diferença do preparo físico. Parecia que a peralvilhas possuíam três pulmões e as idosas, meio. No entanto, era o que tinham no momento. Não havia a possibilidade de brotar células formadoras de órgãos respiratórios novos em folha. Jogariam com garra. E meio pulmão. O domingo havia chegado. Uma a uma foram se reunindo perto do campo onde o jogo anterior acontecia, com quase uma hora de atraso. Devido a isso, elas jogariam ao meio dia. Era um dia seco e quente de abril. No vestiário, as camisetas foram distribuídas. Felizmente, havia reservas para quase todas as posições. O número 16 ficou de fora. Aparentemente, uma macumba do técnico maior. Algumas jogadoras não haviam levado meiões, outras haviam saído na noite anterior e dormiram até tarde. Uma esqueceu por completo do jogo e teve que ser avisada às pressas. Havia jogadoras desconhecidas, que nunca foram em treino algum, que só apareceram para jogar. Desde que fizessem algo em campo, o comparecimento repentino seria perdoado. Tiveram jogadoras que mesmo telefonadas diversas vezes, não atenderam aos chamados e simplesmente não compareceram ao jogo – depois alegaram problemas pessoais -. Mas não havia mais nada a ser feito. Era a hora do jogo. As meninas colocaram suas coisas no banco de reservas e se juntaram em um círculo. Afastaram as pernas e colocaram os pés lado a lado, encostando nas chuteiras das companheiras. Formaram ali um vínculo de cumplicidade e confiança. Sabiam que cada uma ali daria o sangue e o suor pelas outras. A torcida composta por pais e namorados gritava pelas grades enferrujadas que circundavam o campo. O time todo se uniu para a foto inicial, na tradicional posição. Elas tremiam. Colocaram suas caneleiras, prenderam os cabelos. Fizeram preces, alimentaram suas superstições, tomaram os últimos goles de água. O time titular entrou em campo. Cada uma tomou sua posição. Algumas olhavam com receio para o Alto a fim de confirmar seu perímetro de atuação. O nervosismo era grande. Olhavam do juiz para o Mirim, dele para a goleira, dela para as outras, delas para os próprios pés com travas.

Então, o árbitro levou o apito aos lábios.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

ônibus? numa hora dessas?

Parece que eu exerço uma estranha simpatia nos motoristas e cobradores. Em especial de T1s e T1s Diretos.
Isso é realmente curioso. Não sou uma pessoa simpática. Não ao menos com quem não conheço. Passo muitas vezes a impressão de sisuda e até esnobe. Mas isso não vem ao caso.

Sábado, peguei o colectivo e, ao passar pela roleta, ouvi do cobrador:

"Indo pra aula hoje, loirinha?"

Loirinha? Que bela intimidade com o cobrador das 7h40. Nem a minha mãe me chama assim.

Quando eu chego meio tarde na parada, o motorista pára para mim no sinal e abre a porta. E diz:

"Não acordou hoje, é?"

He... é brincadeira... Ainda tenho que ouvir o motorista do ônibus me cobrando responsabilidade.

Sem contar que, esses dias, ao sair do ônibus, esse mesmo veio falar comigo:

"Resolveu frequentar a aula, é?"

Fazia dias que não ia com o ônibus das 7h25, horário dele. E ele me cobrava as aulas.


É... é da intimadade que se dá o abuso.

Mas eu aguento. Não ha nada melhor que uma conversa e um sorriso mistoso logo no início da manhã.

domingo, 11 de maio de 2008

À Dênis Marques, a mãe.

Ednesi dizia que sabia de tudo. Dizia que seu nome tinha sentido (É uma deusa romana!). Sabia tudo do céu, da terra, da água e do mar. Especialmente do mar. Às vezes, parecia que tinha vindo de lá. Dizia saber o nome dos bichos, como chamá-los para perto, o que comiam e onde viviam. Como se não bastasse, dizia saber tudo da condição humana. Sabia por que agiam de certas formas em certas ocasiões. Lia seus pensamentos. Previa ações. Mas um fato. Um simples fato. Na verdade, dois. Dois fatos quebraram Ednesi. Em um dia de chuva, achou dois embrulhos na soleira de uma loja de pneus. Um era azul, da cor do céu, das nuvens e do mar. O outro era vermelho, intempestivo, intenso. Levou os embrulhos para casa. Deixou-os embrulhados por muito tempo. Não tinha coragem de abri-los. Podia haver algo ali que não conhecesse. Poderiam duvidar de seu magnífico conhecimento. Ela mesma poderia duvidar. O marido, de olhos claros e serenos, achou que não valia a pena esperar. Um dia, depois de Ednesi sair para o trabalho, o marido, Wennot (É americano, os pais vieram de Michigan!), foi furtivamente até o quarto e pegou os embrulhos. O coração batia acelerado. A esposa poderia voltar para casa a qualquer momento caso tivesse esquecido alguma coisa. Pegou o embrulho anil primeiro. Trouxe perto do rosto. Descobriu parte do embrulho. Viu dois olhos. Da cor do pano. Que piscava para ele. Espantado, quase deixou cair o embrulho-vivo no chão. Respirou fundo, olhou ao redor para ter certeza de que não estava sonhando ou procurando alguém para confirmar o que acabara de ver. Olho de novo para a parte descoberta do embrulho. Os olhos estavam lá. Sorrindo. Como não haviam notado que havia olhos dentro do embrulho? Tanto tempo, achando que não era nada! Descobriu o resto dos olhos e viu uma espessa cabeleira lisa cor de sol. O embrulho vestia uma roupa de marinheiro. Até então, estava tão entretido com o embrulho anil que não se dera conta de que havia outro embrulho. Olho para cima da cama e viu o outro embrulho. Vermelho. Furioso. Vivo. Olhou com mais calma, de perto, e pode ver que o embrulho se movia quase imperceptivelmente. Sacudia. Como nunca havia percebido isso também? Que inocente... Embebido na sabedoria da esposa, achava que não sabia de nada. Que somente ela sabia. Mas agora ele sabia. Sabia mais que ela. Ednesi nunca havia aberto os embrulhos. Voltando em si, Wennot, com um olho no embrulho azul, se voltou para o vermelho. Com receio, descobriu a mesma parte. Agora os olhos do embrulho-vivo não eram mais azuis. Eram castanhos. Castanhos claros. E não sorriam de volta. Eram de um olhar intenso, penetrante. Que fizeram o marido cobrir o embrulho novamente. Olhou para o ex-embrulho azul. Olhou para o embrulho vermelho. Com cuidado, destapou o resto. Diferente do anil, o vermelho não possuía os cabelos lisos. As melenas caiam em cachos, mas também eram cor de sol. Vestia uma roupa roxa. Tentou morder Wennot com os parcos dentes que tinha. Wennot então se afastou e olhou os dois ex-embrulhos, agora seres. Embevecido com a doçura do que via, não notou que Ednesi chegava. Ela parou na porta, atrás de Wennot. E não disse nada. Sua cara era de terror. Os embrulhos haviam sido descobertos. E ela não sabia o que era aquilo. Foi aí então que se deu conta. Que era bom. Que era bom não saber. Que era bom o novo. Que tinha vontade de descobrir. Chegou mais perto de Wennot, que ficou petrificado com a aproximação da esposa. Chegou perto dos pacotes não mais pacotes. Olhos para os dois seres. Um de aura azul. Outro, de vermelha. Eram tão distintos. Emanavam energias diferentes. E ela teve curiosidade, pela primeira vez. Curiosidade de saber como lidar com a situação. Como cuidaria dos embrulhos, afinal, seu salário de funcionária pública mal dava para sustentar duas bocas. E sorriu. Sorriu em frente ao novo. E abraçou. Os embrulhos, o marido e a idéia. E criou cuidou conheceu aprendeu discordou chorou riu brigou dançou e viveu.

Até hoje.