sexta-feira, 18 de abril de 2008

Anatomicamente Estúpidos

Uma aula de anatomia. Várias mesas de metal espalhadas pela sala. O presunto em cima da mesa me fez gelar. Passei pela porta entreaberta e vi aquele corpo estendido na mesa. Estava no celular e passei por ali na maior das inocências, achando que teriam meros ossinhos espalhados pelo local. Ledo engano. Era uma tia. Gelada e pálida, tinha um corte no tórax, com a pele aberta como um livro, os músculos já definhados expostos para os estúpidos alunos. Uma carinha simpática, já sem cabelos, olhos fechados e nariz adunco. Pelada. A tia estava pelada. Devia ter uns 60 anos. Luvei a luva de borracha e comecei a levantar as pelancas velhas da tia. Ela sujava a mesa de gordura morta e amarela. Os estúpidos se apoiavam ali. Os Estúpidos. Eles gritam em torno da tia, mexem nas suas gélidas mãos, tentam abrir seus olhos cansados. Na terça-feira, o jovem professor, ginecologista – eu fico imaginando o tamanho da obsessão para um homem ser ginecologista - consente com a baderna e, resignado, mexe nas vísceras dos outros, sem o menor pudor, mostrando a nós, os Nem-tanto-estúpidos, onde fica o ventrículo, o pâncreas, e todos aqueles órgãos que um dia fizeram dos presuntos mortais. Mortais, porque agora estão mais que mortos. A tia fica paradinha no canto dela, esperando o professor de quinta tocar suas flácidas carnes. Fica conformada com a falta de atenção dos Nem-tanto-estúpidos, que vigiam o Sem-nariz e o Ciborgue. Na quinta-feira, a tia sorri por dentro. Um professor charmoso, do estilo galanteador de presuntos, apalpa sua áurea tez e alisa seu peitoral, abrindo delicadamente seu tórax, mostrando aos Nem-tanto os belos levantadores de escápula que a tia um dia teve.
- Ai, que nojo! Uma barata! grita uma Estúpida loira, mascando aquele estúpido chiclete, com aquele estúpida boca aberta. Essa é uma estúpida que observo desde o primeiro dia de aula – não tenho como fugir disso. Ela saiu nas propagandas na parte de trás dos ônibus, dizendo que passou na UFRGS. Aquela bunda estúpida fica se sacudindo por entre as mesas, tentando os pobres presuntos, que nada podem fazer.
A barata passeia por entre os corpos. (Deveríamos ter aulas com baratas. Elas devem saber muito mais que o ginecologista tossidor – ele dá irritantes tossidas o tempo todo.) Achei uma perna de barata nas costas de um dos presuntos. O coitado morre, é aberto e ainda tem que ficar de bruços, com pernas de baratas entre os rombóides. O professor charmoso pegou a perninha com a pinça, olhou e colocou de novo nas costas do homem. Nem ele tem mais respeito pelos presuntos. Deve dormir com eles.
O clímax da tia é o mês de abril, quando os Estúpidos entram em miologia. É quando ela é o centro das atenções da quinta-feira, sendo a única presunta a estar com os músculos visíveis. É o momento de glória do presunto. Esse pode ser o único momento de glória da tia, em toda a vida pré-presúntica. Me disseram que aqueles presuntinhos eram indigentes. Eu duvido que a tia tenha sido. Deve ter sido madame chique que queria que o corpo ajudasse a ciência. Mal sabia ela que serviria de brinquedo para estúpidos alunos. O professor falou que o Ciborgue doou seu corpo. O Ciborgue é Ciborgue porque tem um braço de titânio. Ele deve ter sido foda. Duvido que tenha sido um indigente. Mendigos não têm braços de titânio. Não deve ser comum nem pessoas não-mendigas terem braços de aço. Eu não tenho.
- Aqui tem o serratil anterior.
- Eu não consigo ver, falou o menino com cara de Jesus.
- Tá aqui, ó. Tu pode ver que é um músculo agonista, digástrico, de insersão fixa.
Dá pra ver na cara dos Estúpidos que eles não têm idéia do que se trata. Acho que é por isso que eles gritam tanto. A loira coloca a caneta na boca e fica girando ela, o tempo todo, com cara de imbecil. Depois se faz de entendida, perguntando pro professor as mais absurdas obviedades. O com cara de Jesus, também chamado de Valdívia, é meio ranhento, e fica sempre puxando o catarro em cima dos cadáveres. É aquele cara de aparelho que não consegue fechar a boca. Ele não fica muito na aula. Fica mais preocupado em incomodar sua Maria Madalena loira com as luvas sujas de vísceras. Tem um outro, que chamam de Gorila. Tem uma tatuagem tosca no braço, mal feita. Tenho pena do Gorila. Não sei se ele nota o quão mal feita a tatuagem dele é. O Gorila não pode ver o Zezinho, o esqueleto da sala, que já pega ele pelo braço cadavérico e sai arrastando suas rodinhas pela sala. É uma mórbida dança que dura dois minutos e depois se encerra, com o Zezinho jogado em um canto e o Gorila achando outras peças para se divertir.
Eu não consigo ficar muito tempo na aula. Principalmente nas terças-feiras. O ginecologista me irrita com sua tossezinha estúpida. Ele sua o tempo todo, em cima dos pulmões da mesa. Encaixei ele nos meus Estúpidos.
- Aaai, meu olho! É muito forte esse cheiro!
(As reclamações de estúpidos começam sempre com um Ai, quando não um Aííí ou um Aiê.)
Lá vem os Estúpidos reclamando do formol. O formol faz arder um pouco os olhos, mas nada que sustente o escarcéu que os Estúpidos fazem. Tem um que leva óculos de natação para proteger os globinhos oculares. Eles tapam o nariz e os olhos com os jalecos e ficam fazendo caretas cada vez que o professor mexe no presunto. A tia não deve mais se importar com o cheiro. Eu também não me importo. Parece que esse cheiro já fazia parte da minha vida. Parece que a gente vive entre presuntos. Tantos mortos-vivos andando pela cidade, sem a menor expressão, e que acabam na mesa, regados a formol. Esse cheiro impregna as ruas. Acho que acabei me acostumando com a podridão da cidade.
- Esse imbecil vai puxar meu mamilo.
- Não grita na minha orelha.
- Larga meu dedo.
Não consigo ouvir, mas sei o que os presuntos pensam. Eu penso por eles. Às vezes, eu acho que eu sou um daqueles presuntos, sendo cutucada por um Estúpido, com todos cheirando a formol ao meu redor, me sentindo apodrecer e vendo que não posso fazer nada, a não ser ficar parada e deixar um babaca tossidor pegar meu coração e fazer de mostruário.

4 comentários:

Carolina Tavaniello P. de Morais disse...

Um bando de estúpidos em volta de um presuntinho. O presunto não me incomoda, já a gente estúpida...bem, elas não existem apenas nas aulas de anatomia!
Gostei do texto!

Luana Duarte Fuentefria disse...

Esse é o teu gonzo? Bem legal!

Mas me imaginei lá e senti o cheiro horrível. Quase me encaixei entre os estúpidos...

Anônimo disse...

Adorei, Bebelão!
Muito bom mesmo.
Como já passei por essa experiência (de uma aula de anatomia cheia de Estúpidos) me sentia ali, observando.
Pobres dos nossos colegas da UFRGS que não sabem que somos jornalistas vestidas de gente. Ah, se soubessem...

Samir Oliveira disse...

grandee bebela! legal teu gonzo, não conhecia muito teus dotes textuais. ah, eu numa aula de anatomia seria um hiperestúpido..